Arquivo da Categoria ‘De 1700 a 1800’

CONVERSA ANIMADA

Dois velhos costumavam se encontrar próximo ao porto, de onde ficavam silenciosamente observando as embarcações a e atividade dos estivadores. Assim ficavam toda uma tarde calados, um em frente do outro, a sorver pitadas de rapé. E sempre, ao anoitecer, despediam-se com a recomendação mútua de:

– Venha amanhã mais cedo para conversarmos.

O MERCEEIRO DEVOTO

– Que coisa boa é a honestidade; – dizia um merceeiro à sua mulher, ao final do dia – que crédito nos fez adquirir!

– Sim, – disse a mulher – nunca devemos nada a ninguém, nem faltamos jamais com o peso, medida ou qualidade.

– Ouça, acabo de me lembrar: – disse o marido – colocaste água no tabaco e no vinagre?

– Sim, já está feito.

– E pólvora na aguardente?

– Também.

– E gesso no açúcar?

– Sim.

– E sebo na manteiga?

– Sim, homem, já está tudo feito!

– Muito bem; pois vamos rezar o rosário, e depois poderemos nos deitar na graça de Deus.

PERFEIÇÃO

Pregando certo frade sobre a inefável sabedoria do Todo-Poderoso, estendeu-se em provar que tudo o que ele criou é sumamente perfeito.

“Isso dirás à tua tia!” dizia para si mesmo um corcunda, a cada prova dava o frade, “tu dirás o quanto queiras, mas não me irás convencer” – Não parou nisso, mas querendo dar uma prova positiva contra tudo o que havia dito o pregador em seu sermão, saiu o corcunda a esperá-lo à porta de igreja, pôs-se diante dele, lhe disse:

– Vós, padre, afirmastes que Deus fez todas as coisas perfeitas; pois olhai para mim!

– Filho meu, – respondeu o frade com doçura  – tu és a prova viva do que eu tenho dito, porque em se tratando de corcunda, não poderia Deus fazer um mais perfeito.

MILAGRE

Querendo um rei passar em revista sua guarda, mandou que formasse sobre uma planície onde um lavrador tinha semeado feijão. O lavrador veio assistir, como muitas outras pessoas, a revista, e deparou com sua propriedade destroçada pelas tropas, causando-lhe profundo desgosto; e pôs-se a gritar:

– Milagre! Milagre!

– Que tens, meu bom homem, – disse-lhe um oficial – para gritar “milagre”?

O lavrador, sem responder, continuou a berrar:

– Milagre! Milagre!

Chegando o caso aos ouvidos do Rei, ele ordenou que o homem fosse trazido à sua presença; e perguntou-lhe por que gritava “milagre”.

– Senhor, – disse ele – é por que eu tinha semeado nesta terra feijão, e nasceram soldados!

RESPOSTA À ALTURA

Passeava um garboso oficial por uma das ruas principais do centro da cidade. Sendo de gênio esquentado, viu um homem rir-se ao voltar o rosto para ele, pelo que perguntou com arrogância:

– Por que rides vós, cavalheiro, quando eu passo?

Ao que replicou o outro, inabalável:

– Por que passais vós, cavalheiro, quando eu me rio?

NADA PESSOAL

Um advogado costumava fazer azedas críticas ao Marquês que administrava a região. Certo dia ele pediu uma audiência com o fidalgo, ocasião em que lhe disse:

– Excelência; ainda que o entusiasmo e o patriotismo me induzam, muitas vezes, a falar com acaloramento de Vossa administração pública; quero frisar que não se trata de nada pessoal.

Ao que replicou o Marquês:

– Suplico-vos que sejais mais moderado e recatado em vossas expressões, ou serei obrigado a mandar-vos prender, e se depois de admoestado continueis tão violento, sereis chicoteado em praça pública, e se nem isso der resultado, sereis enforcado. Também não se trata de nada pessoal.