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SÓ DISSE PARA ELE
Dizia um vaidoso fidalgo a um ancião cortesão:
– Estando eu ontem à noite ao deitar do Rei, me disse este Monarca esta novidade.
E apropriando-se a si só, o que o Soberano disse a todos os que estavam presentes. Aquele senhor, que reconheceu a loucura; e para lhe abater o orgulho, lhe disse:
– Estando eu ontem na catedral ao sermão, o pregador me disse coisas admiráveis.
A JUMENTA DE BALAÃO
Estando um mestre a explicar o Pentateuco aos discípulos, em que se fala de Balaão, que ia na burra que falou, o dito mestre era um pouco colérico, um deles se pôs a rir; o mestre ralhou, e enfadou-se, ameaçou, e disse que uma jumenta podia falar, sobretudo quando tinha diante um anjo com a espada nua.
O discípulo riu mais, e ele picado, lhe deu um grande coice. O discípulo, chorando, diz:
– Eu entendo que o jumento de Balaão falava, mas não que dava coices.
HÁBITOS
Um ladrão de jogo, jogando com um antigo capitão de cavalaria, querendo furtar cartas, usava da indústria de espevitar a luz com uma mão, e com a outra furtar a carta. O capitão que observou isto por duas, ou três vezes, lhe disse:
– Eu noto, senhor, que cada vez que vós atiçais a vela, eu tenho mau jogo; ser-vos-ei muito obrigado, se vos absterdes de ter esse trabalho; porque eu estimo mais ver menos claro, e ver melhor jogo.
O rapinante se absteve por um pouco. Passado algum tempo, estando uma grande soma para se decidir, e tendo o ladrão mau jogo, avançou as tesouras para esmurrar a vela, e diz:
– Perdoai-me, senhor, que é um antigo costume que tenho, de que me não posso abster.
– E eu, – diz o militar, apanhando com o furto na mão e agarrando-o – também tenho o costume de esmurrar os que me roubam no jogo.
ONÇA LERDA
Tendo um fidalgo um bom serviço de mesa, mandou-lhe acrescentar uma peça de gosto para ornato, e que representava uma onça. Outro seu amigo lha mandou pedir para ornar sua mesa num banquete que pretendia dar. Indo a peça, não voltou à casa de seu dono senão passados dez meses.
Passados alguns meses mandou este senhor fazer outra rica peça, trabalhada às mil maravilhas, que representava uma tartaruga. Sabendo-o, o amigo passado, lha mandou pedir para dar uma ceia a uns estrangeiros,
Procurando o fidalgo ao que a ia pedir quem era; e sabendo ser o mordomo, lhe disse:
– Dizei ao senhor fulano, vosso amo, que sendo o meu animal onça tão ligeira gastou dez meses para voltar a casa, que fará a tartaruga que é tão vagarosa?
E assim o despediu sem nada.
CONVERSA ANIMADA
Dois velhos costumavam se encontrar próximo ao porto, de onde ficavam silenciosamente observando as embarcações a e atividade dos estivadores. Assim ficavam toda uma tarde calados, um em frente do outro, a sorver pitadas de rapé. E sempre, ao anoitecer, despediam-se com a recomendação mútua de:
– Venha amanhã mais cedo para conversarmos.
DE MÉDICO E DE LOUCO
Tinha um Marquês um bufão de grande inteligência, o que sempre se precisa ter para saber fingir-se de tolo. Estando esse bobo certo dia com o seu amo, tratou-se sobre qual profissão na cidade era a mais numerosa. O gracioso respondeu que a dos médicos.
– Muito pouca notícia tens desta cidade, – disse o Marquês – pois apenas haverá nela quatro ou cinco médicos.
Argumentou o bobo, dizendo que tinha se posto um dia na sala do Marquês com um lenço dobrado na cara, como quem estava com dor de dentes. Todos os que passavam, entrando e saindo, lhe perguntavam o que tinha, e lhe ensinavam seu remédio. A todos os “médicos” o bobo rendia graças, e dizia que ia para casa por o remédio em prática.
E o último “médico” fora o próprio Marquês, que saindo e vendo-o naquele estado, teve dó dele e lhe ensinou outro remédio!
Com isto o Marquês teve que rir, e reconheceu ter perdido, e ter tido o gracioso razão…